segunda-feira, 13 de julho de 2009

Jerusalém segundo Yehuda Amichai

Tendo começado este blogue pela língua, é óbvio que passe sem delongas aos poetas. Escolher talvez seja injusto, mas o nome que se me impõe imediatamente é o de Yehuda Amichai (1924-2000). Entre os seus poemas... Podiam ser tantos, talvez todos. Nenhum em português, nem sequer do Brasil, que eu saiba, país muito civilizado, onde muito se traduz, muito se estuda e muito se cria. É pena. Atrevo-me a traduzir a partir da versão inglesa de Stephen Mitchell. É o 19º «andamento» do seu poema Jerusalém 1967.

Aos meus amigos que sabem bem hebraico, aqui deixo a versão original, para me apontarem as involuntárias e inevitáveis traições.


יְרוּשָׁלַיִם בְּנוּיָה עַל יְסוֹדוֹת קְמוּדִים
שֶׁל צְעָקָה מְאֻפֶּקֶת. אִם לֺא תִּהְיֶה סִבָּה
לַצְּעָקָה, ישָּׁבְרוּ הַיְסוֹדוֹת, תִּתְמוֹטֵט הָעִיר
אִם תִּצָּעֵק הַצְּעָקָה, תִּתְפּוֹצֵץ יְרוּשָׁלַים לַשָּׁמָיִם



Jerusalém está construída sobre as fundações abobadadas
De um grito retido. Se não houvesse razão
Para o grito, as fundações ruiriam, seria o colapso da cidade;
Se o grito fosse gritado, Jerusalém explodiria para os céus.

Prólogo aos senhores do desterro de Portugal

Ler a Consolação é hoje, como sempre foi, empresa virtualmente impossível para o comum dos portugueses.

Obra-prima das letras lusas do Renascimento e monumento da cultura judaica, documento fundamental de um passo decisivo na história do país... bem puderam pregar no deserto os nossos mais ilustres professores de literatura e história, que a obra jamais foi publicada, pelo menos em edição acessível a um público um pouco abaixo do doutorado das letras.

De facto, como é lógico, esteve no índices expurgatórios desde a sua publicação.

Depois, com o fim da Inquisição, era tarde. A memória judaica nacional estava definitivamente enterrada. O país medieval, com as suas gentes de três religiões, a dominante cristã e as minoritárias judaica e muçulmana, dera lugar à nação moderna, «etnicamente» homogénea, obra bem sucedida de três séculos de Inquisição, instrumento fundamental da construção do moderno Estado-nação português, aquele onde nascemos e hoje vivemos. A Consolação pertencia, assim, a um tempo volvido.

Ao historiador Mendes dos Remédios se deveu, enfim, a sua primeira edição em Portugal, entre 1906 e 1908, com uma transcrição diplomática do texto original de Ferrara, de 1553, saído da mesma oficina de onde nos chegou A história de menina e moça, de Bernardim Ribeiro.

Foram precisos mais de oitenta anos para que a Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) publicasse de novo a obra, com um valiosíssimo estudo de Y. H. Yerushalmi. Porém, o texto da Consolação, da FCG, era ainda de mais difícil leitura do que a edição diplomática de M. dos Remédios: um fac-simile de um dos raríssimos exemplares restantes, pertencente à Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa.

Entretanto, a obra conheceu traduções, integrais ou parciais, de melhor ou pior fortuna, em inglês, hebraico, yiddish e, mais recentemente, em francês, por Lúcia Liba Mucznik, que se aguarda com expectativa.

Quando pus o post do frontispício, ocorreu-me: e que tal dar aqui a ler o célebre prólogo?

Não sou filólogo, de modo que terei cometido erros de leitura. Limitei-me a grafar na norma actual, e ao menor número de alterações na pontuação, para facilitar a leitura de um texto que, sendo por vezes de uma beleza extraordinária, é irremediavelmente difícil, como qualquer texto de Quinhentos. Espero não ter traído demasiado e espero tê-lo tornado mais acessível para os curiosos dessa obra de que tanto se fala e (quase) ninguém leu.

Servi-me da edição de M. dos Remédios. Um dia destes cotejo com o fac-simile em semi-gótico. Desejo-vos tanto prazer a lê-lo como eu tive a transcrevê-lo.

*

Que sentido dar ao desastre, ao desespero e à dor, que os judeus portugueses sofreram com a expulsão de 1496, imediatamente transformada em violenta «cristianização»? É a isso que Samuel Usque tenta responder.



Da ordem e razão do livro
Prólogo aos senhores do desterro de Portugal

Aos aflitos ânimos soe a memória dos males passados em parte diminuir o trabalho dos presentes, especialmente se os que passaram excedem aqueles em que se acham, e posto que malmente se cura um mal com outro, todavia este género de mezinha foi aprovado por aqueles excelentes barões, que com sua muita ciência remédios para as aflições da alma nos deixaram, e como as pessoas podiam suportar os trabalhos a que esta miserável vida que vivemos tanto sujeita é e submetida; pelo que Sócrates (espelho e norte por onde se guiaram não somente os atenienses inventores de toda a doutrina, mas o resto da gentilidade possuidora de todas as boas artes) dizia que, vendo-se as pessoas em fadigas, cotejassem-se os males que atrás ficavam com os presentes, que facilmente lhe achariam consolação. Porque nenhum seria tão pequeno que assaz maior a respeito do presente não se achasse, e certo se bem quiséssemos olhar e nos não deixássemos vencer da paixão da alma, não há trabalho por grande que seja cuja força agora nos atormenta, que já não hajam os passados visto e padecido maiores; e se em alguma gente isto se entende e pode verificar, é na nossa trabalhada e corrida nação, a qual ainda que nestes nossos dias padeça graves tribulações, todavia muito maiores foram aquelas que já pelos nossos antigamente passaram, pelo que estas se podem reputar por pequenas. E segundo meu juízo facilmente se pode isto crer, ou por esta gente ser já tão diminuída, que os males, posto que sejam grandes, não acham sujeito para neles empregarem suas forças; ou o que creio e desejo, por esta tormenta que até agora nos perseguiu e persegue começar-se já a amainar, e a desejada manhã depois da tempestuosa noite do inverno querer-se nos aparecer. Verdadeiramente sendo todas as cousas pelo infinito criador perfeitamente regidas e sem nenhuma tacha compostas, é de crer que, assim como tiveram princípio, não carecerão de fim, porque só ele é o infinito e sem princípio. Pois sendo como se vê os trabalhos tantos e de tanto tempo há principiados, e havendo envalecido, certo está que, se os pecados nossos não lhe dão nutrimento em que se sustenham, presto virão a fim, e começará de mostrar-se aquela bonança que esperamos.

Pelo que eu comovido, e vendo esta nossa nação seguida e afugentada agora dos reinos de Portugal, ultimamente uns por pobreza, outros por temor, e os mais deles pela pouca constância que já de início em nossos ânimos repousa, vacilar, e mais do dever submeter-se aos trabalhos e deixar-se vencer deles, propus relatar as tribulações e fadigas que a nosso povo sucederam com as causas por que cada mal se moveu; recolhendo-os por certo não com pouca fadiga e trabalho de diversos e mui aprovados autores, como nas margens se pode ver, e os mais modernos trabalhos autorizados com as memórias dos velhos que neles se hão achado. E porque não era razão ficarmos com as lástimas abertas e assim cruas, determinei cerrá-las com aquelas consolações que nosso Senhor nos oferece, e dar-lhe em escrito aquele feliz fim que nós lhe esperamos em efeito.

Cada tribulação leva ao pé a profecia que parece haver-se ali cumprido, para vermos que, assim como os que profetizaram nossos males saíram verdadeiros, necessariamente creremos que nos bens assim mesmo o sairão, pois um e outro manou de uma mesma fonte. Não porque em real verdade entenda ser aquela profecia a própria que foi dita para aquele trabalho, pois só é do Senhor este segredo, e é de crer que nem o profeta repartiu em sua fantasia e tenção onde e em que partes cada cousa havia particularmente de cumprir-se; mas, narrando eu o que nos aconteceu, sirvo somente de confrontá-lo com o que as profecias nos deixaram dito sucederia, e isto sem prejuízo do que nossos sábios hão escrito que não haviam realmente de acontecer algumas delas, mas que eram figura de outra cousa ou estilo de profetas em ampliar às vezes a profecia. Verdade é que têm alguma ou muita autoridade os que provam com experiência que somos nós outros deste tempo, porém não quero que me sirva para alterar a tenção daqueles espíritos divinos que já doutra maneira o entenderam.

A ordem que no mais desta composição tive foi, que fingindo o grande patriarca Yahacob com nome de Ycabo e em hábito de pastor como o ele foi, chora o mal de seus filhos, filhos por sangue, filhos em lei, filhos em espírito, e muitas vezes todo o corpo de Israel representa ele com muita razão, pois ambos são um só sujeito, ao qual consolam Nahum e Zahariahu com os nomes um pouco demudados, à maneira do que os antigos escritores soem fazer, os quais sendo profetas tão excelentes como em suas palavras se mostram, além de lhe satisfazerem muitas dúvidas que Israel move, finalmente com razões e profecias autênticas persuadem como os males são passados e o bem tão desejado está cerca, e da qualidade que há-de ser dão muitas e verdadeiras novas. E prouvera a nosso Senhor que pudera tanto com minha pena escrever quanto o alto sujeito da obra o merece, porém consolo-me que nas grandes cousas e dignas de memória, o menos que os bons juízos notam é a língua ou estilo, porque a cousa em si mesma se estima, e as palavras não é outro que uma declaração, as quais importam pouco serem elegantes ou mal ordenadas. Movi-me também a escrever este pequeno livro, para tentar se alguns nobres engenhos, dos quais não há poucos nesta nossa nação, se espertariam a dizer mais copiosamente e com maior felicidade, o que eu neste pequeno volume aceno; e certo que minha condição é tanto inclinada ao bem público, que daria por bem empregado este meu trabalho ser tido por vão, e de pouco momento, em comparação das boas e louvadas composições que depois dele saíssem.

Os nomes dos pastores não deixam de ter algum fundamento, porque Ycabo, que representa nosso padre, tem as mesma letras que Yahacob e, além disso, na língua santa quer dizer «passou-se a glória de Israel», que foi o nome que a nora do sacerdote Ely pôs ao filho que pariu com a triste nova da arca pelos Palestinos cativa.

Numeo é derivado de Nahum consolador, que é o efeito que ele faz nesta obra; e Zicareo, de Zahariahu, que lembra os bens que recebeu Ysrael em desconto de seus males, e as vinganças que por amor dele foram feitas.

Alguns senhores quiseram dizer antes que soubessem minha razão, que fora melhor haver composto em língua castelhana, mas eu creio que nisso não errei, porque sendo o meu principal intento falar com Portugueses e, representando a memória deste nosso desterro, buscar-lhe, por muitos meios e longo rodeio, algum alívio aos trabalhos que nele passamos, desconveniente era fugir da língua que mamei e buscar outra prestada para falar aos meus naturais: e dado caso que à volta ouve muitos do desterro de Castela, e os meus passados dali hajam sido, mais razão parece que tenha agora conta com o presente, e maior quantidade.



domingo, 12 de julho de 2009

Frontispício da Consolação às Tribulações de Israel, de Samuel Usque, obra editada em Ferrara, na oficina de Abraão Usque, em 1553. Lê-se
CONSOLACAM AS TRI-
BVLACOENS DE
ISRAEL
COMPOSTO POR SA-
MUEL VS-
QUE

EMPRESSO EN FERRARA EN CASA DE ABRAHAM ABEN VSQUE 5313 DA CRIAÇAM A 7 DE SETEMBRO






Exilados de Portugal, mil anos depois de se terem instalado no território do país que ajudariam a conquistar, povoar e construir, pelo facto de serem judeus e pelo facto de ter deixado de ser possível ser judeu e português, em Portugal, a partir de D. Manuel, os judeus portugueses nem por isso deixaram de reivindicar e amar a pátria cujo o reino os «aboliu».

Olhem para a imagem.

Sim, a vinheta que decora o frontispício da grande obra literária do exílio dos judeus portugueses é isso mesmo que estão a ver: a esfera armilar com que o próprio D. Manuel ornou a simbologia do país, na era da expansão a que o seu reinado ficou associado.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Uma explicação sobre o título deste blogue


Uma explicação sobre o título deste blogue: Sonho atravessado é o título da autobiografia de Eliezer Ben-Yehuda.

Eliezer Ben-Yehuda (1858-1922) foi um homem que sonhou até à desmesura.

Pensou que seria possível trazer o Hebraico de volta à vida, quando, desde há pelo menos dois milhares de anos, a língua estava reservada ao uso litúrgico e, quando muito, a veículo dos responsa rabínicos, tirando episódios mais ou menos curtos de regresso à literatura e a instrumento de escrita científica, como foi o caso na Península Ibérica.

O seu sonho foi considerado louco, quando não a raiar o herético. Mas Ben-Yehuda não se limitou a sonhar. Consagrou a sua vida a essa causa. Considerava que não tinha sentido reconstruir a nação judaica na Terra de Israel sem o renascimento do Hebraico entre os seus habitantes. Começou por dar o exemplo: o seu filho, Ithamar Ben-Avi, foi a primeira criança da era moderna a balbuciar as primeiras palavras na língua da Tora.

Hoje, é a língua de pelo menos sete milhões de falantes em Israel, e de certamente muitos mais, na diáspora. Afinal, a palavra «hebraico», «ivrit», עִבְרִית, tem na raiz o étimo «avar», עבר, que quer dizer «atravessar». A língua atravessou os milénios, e hoje volta a «respirar-se» nela.

O sonho de Ben-Yehuda foi, pois, em grande parte responsável por essa travessia.

Ilan Stavans, um excelente escritor mexicano (sim, não parece, pelo nome, claro, é judeu asquenazita), termina o seu livro, Ressurecting Hebrew, contando a seguinte história, que traduzo do original:

«Ao olhar para a pedra tumular de Ben-Yehuda, reparei em restos de tinta de spray. Tinha sido coberta com uma espécie de grafittis. Quando depois interroguei uma conhecida sobre o caso, ela contou-me que a profanação acontecera já por várias vezes, cometida não por delinquentes, ou árabes, mas por judeus religiosos fanáticos.

Ri.

Acrescentou que quando deram a notícia a uma das descendentes de Ben-Yehuda, ela perguntou: "Em que língua borraram os grafittis?"

"Em Hebraico."

"Ah, então Ben-Yehuda ganhou."»

Vale a pena sonhar e, mais do que isso, tentar atravessar o sonho, digo eu para terminar.